Não prometo (absolutamente) nada #08: a crise existencial do meu eu online
Quando o fecho vai longe demais
Se você percebeu alguma coisa, peço desculpas pela ausência na semana passada. Tive duas crises existenciais seguidas e quando eu me dei conta estava diante de um Google Docs às duas da manhã sem saber o que escrever. Tive que desapegar naquela semana. Era desapegar ou pirar e eu fiz a escolha mais sábia.
Se você não percebeu, deixa baixo, vamos continuar.
Estou de férias mas meus advogados não, mas estou trabalhando quase todos os dias em um projeto diferente. Infelizmente, não posso revelar nenhum detalhes dele ainda. Se tudo der certo, vocês saberão mais sobre ele em breve. Basicamente, tirei férias para trabalhar. No momento em que percebi isso, fiquei imediatamente deprimida. Veja só: não saí de Merdaulo, não estou dormindo tarde, não estou me divertindo e nem estou lendo todos os livros que queria tanto terminar nas férias. Os dias estão sendo exatamente iguais aos dias em que estou trabalhando normalmente.
A gente faz tudo pra pagar as contas, né? Seria muito mais fácil se recebesse uma ligação me notificando da morte de um parente misterioso que deixou para trás uma fortuna milionária? Sim, mas infelizmente minha família só tem dívidas.
Antes de continuarmos, um apelo:
São seis reais por mês e em retorno minha alegria infinita de conseguir pagar a conta da Vivo Fibra sem cair no cheque especial. Caso você não queira se comprometer, o canal do pix tá liberado:
mariedclrq@gmail.com
Obrigada, nois que voa kerelhowwwww
A segunda crise existencial foi a que me ajudou a parir esta edição.
Ninguém percebeu, mas desativei meu Twitter temporariamente na semana passada para dar uma repensada na minha persona online forjada nesses últimos vinte anos de internet.
Comecei a usar a internet por volta dos 12 anos e desde muito cedo me comuniquei com outras pessoas por meio de comunidades, chats e coisas parecidas. Muita coisa mudou desde então, exceto a hostilidade casual com que grande parte das mulheres que apenas existem no campo virtual precisam lidar vinda de outras pessoas. Na maioria das vezes, essas pessoas são homens.
Sempre fui reclamona, bem aquele estilão de garota enxaqueca, mas pra rebater tal hostilidade casual na internet, fui meio que criando uma Marie Online centrada nesse tipo de hostilidade. Uma Marie mais sarcástica e ligeira nas respostas, mais chata do que sou longe das telas.
Não esperava, todavia, que essa presença virtual fosse ganhar uma certa atenção depois que comecei a trabalhar como jornalista. Hoje, percebo que criei um monstrinho horrível que precisa amadurecer daqui pra frente. Um monstrinho viciado em dar o famoso fecho.
O que acontece é que no Twitter as pessoas são mal-educadas, burras, sociopatas e loucas, então qualquer coisa que você fala está suscetível à interpretação mais burralda vinda de quem vive do outro lado da tela. Depois de muito tempo tentando manter uma certa calma com esse tipo de coisa, perdi a paciência e passei a responder as pessoas na mesma proporção — e deu ruim.
O evento Willy Wonka
O que me leva ao evento do Willy Wonka x Ronald McDonald. Essa baixaria aí começou por causa de um tuíte bem bobinho que postei durante um jogo do Brasil no ano passado. Tinha visto uma conhecida da minha idade falando que se identificava muito com a Wandinha e quis tirar sarro de pessoas acima de 30 anos que se identificam com a Wandinha, uma adolescente.
Só que o tuíte viralizou pesado. Centenas de milhares de pessoas reagiram ao tuíte. Em resposta à minha piadinha imbecil, uma influenciadora tirou sarro do meu cabelo curto me chamando de Willy Wonka.
Quando li o tuíte, achei engraçado e respondi tirando sarro do cabelo dela que, pela pequena foto de avatar, era bem cacheado e vermelho:
“Bom, eu adorei ser chamada de Willy Wonka pelo Ronald McDonald.”
Esse fecho tosco por si só já deu uma estourada, mas a influenciadora ficou meio puta da vida e tentou dar uma militada em cima da minha resposta. Isso piorou a situação e, do nada, comecei a receber mensagens de amigas e conhecidos me avisando que a treta chegou no Tiktok (sim, existem perfis dedicados a comentar sobre tretas de internet), e haviam prints rodando no Facebook, Instagram e no WhatsApp.
Quando a merda (líquida e fétida) já tinha batido no ventilador e espalhado nas paredes, a influenciadora entrou em contato comigo pedindo desculpa. Nós nos resolvemos rapidamente e perguntei se a situação dela melhoraria se eu apagasse a publicação. Concordamos em apagar o tuíte do Ronald McDonald, mas naquela altura do campeonato já não tinha mais volta.
A menina foi massacrada de todas as formas, teve que apagar a conta no Twitter e até hoje alguém surge do nada infernizando a vida da coitada por causa de uma resposta que escrevi, bêbada de cerveja, durante o intervalo de um jogo do Brasil do qual nem lembro mais do placar.
Pois bem. A merda não só tinha batido no ventilador, como agora pessoas desconhecidas estavam espalhando ela por outros ambientes. Muita gente começou a me mandar mensagem. Centenas. Todas as mensagens eram quase idênticas: “hahaha Willy Wonka deu um fecho na Ronald McDonald”.
E assim que é o processo de fazer parte de um evento canônico na internet brasileira.
Nisso, muita gente que antes não tinha a menor ideia de quem eu era começou a me acompanhar nas redes sociais. No primeiro mês, uma boa parcela meteu o pé porque ficou claro que eu não sou um perfil de Humor & Piadas e tento manter um nível de decência comum publicando minhas matérias ou falando das bizarrices que gosto.
O pessoal que ficou por causa do fecho idiota do Ronald McDonald de vez em quando aparecia, naquele espírito terrível de motoboy de treta, quando eu respondia algum tuíte mal-educado.
Percebi que as coisas estavam ficando meio esquisitas quando muitas contas criadas recentemente no Twitter vieram me seguir e interagiam com todas as minhas postagens. Todas tinham poucos seguidores, eram anônimas e tinham o mesmo padrão de comportamento: humilhar pessoas desconhecidas no Twitter a troco de nada.
E eu tenho tempo de internet o suficiente para identificar que essas contas são trolls. Com isso, o pior aconteceu: ganhei um micro-exército de trolls formado por pessoas viciadas em ver gente sendo humilhada na internet para me defender.
Eu não sou o William Bonner
Existe uma retórica bem preguiçosa, mas conveniente, usada por muita gente que habita o Twitter e gosta de escrever coisas mal-educadas e terríveis para desconhecidos— e, óbvio, nunca teriam coragem de dizer isso na cara delas.
É basicamente o seguinte: se você tem um número grande de seguidores, não pode responder uma conta com poucos seguidores que está sendo mal-educada contigo. Isso coloca muita gente em uma posição bastante confortável de sair xingando tudo e todos na internet e depois se fazer de vítima quando leva uma resposta na mesma proporção.
Já li essa desculpinha várias vezes no Twitter, usada por pessoas que sistematicamente vinham me ofender por qualquer coisa. É como se eu não tivesse direito de me defender.
Imagino que, na cabecinha delas, pessoas que têm um número considerável de seguidores são tipo o William Bonner apresentando o Jornal Nacional todos os dias na TV. Você pode até responder o “boa noite”, mas o William Bonner nunca vai ouvir a sua resposta.
Mas isso não acontece na internet. Às vezes, por incrível que pareça, quem tá por trás de uma conta com muitos seguidores consegue ler essas respostas horríveis. E às vezes você tá de pá virada, chutou o dedinho do pé na quina do móvel ou deixou cair pó de café pela cozinha inteira de manhã e decide responder xingando de volta.
E, normalmente, a resposta sempre é: “Nossa, agora eu vou ser linchado porque você decidiu me responder. Eu tenho apenas cem seguidores"
Sim, isso é uma situação comum.
Nessa roda de samsara, onde todos os dias ninguém aprende nada e todo mundo se comunica através de um filtro de hostilidade casual, fica difícil não interpretar algumas das interações que chegam até mim como grosserias gratuitas ou tentativas de sarcasmo.
Isso foi sistematicamente piorando a minha persona online de garota enxaqueca, mas agora meu Eu Online estava munido de um pequeno grupo de trolls esperando a minha próxima resposta mau humorada.
A última vez que isso rolou foi com um cara qualquer, fã de hardcore melódico, que veio tirar uma onda em cima de um tuíte meu. De novo, respondi sem pensar e quando vi tinha gente humilhando o cara por nenhum motivo.
Tipo, conta anônima postando a foto do coitado chamando ele de feio. Gente sendo homofóbica. Bolsonarista defendendo meu tuíte. Não dá, não gostei disso.
Elimine o adolescente arrogante dentro de você
Esse tratado todo sobre interações virtuais é um desabafo. Acredito que seja apenas uma questão de tempo para que esse mesmo público que diz me adorar se volte contra mim na primeira deslizada que eu der. Não é uma questão de “se”, mas de “quando”. Estou me alimentando desse tipo de interação horrível na internet. Mesmo não querendo admitir, esse tipo de recompensa me traz uma satisfação rápida e de curta duração.
Meu estoque de alegria e autoestima está baixíssimo. Lembrem-se: estou trabalhando nas minhas férias. Tô triste, cansada e apavorada. A resposta imediata do cassino das redes sociais me deu uma anestesiada. E eu existo na internet há tanto tempo, especialmente cultivando essa personagem ácida e viciada em dar fechos, que meu medo agora é que ninguém mais tenha interesse nas coisas que estou escrevendo se parar de ser essa personagem.
Porém, mesmo que não gostem da minha mudança de atitude, não quero continuar sendo assim. Não gosto da ideia de ser aquela pessoa insuportável da internet, aquela que é incapaz de conversar sem ser sarcástica. Ou aquela que tem um gabinete do ódio (mesmo que minúsculo) de prontidão para humilhar qualquer um que ouse falar comigo.
Eu tenho consciência de quem eu sou na vida real. Eu sou meio reclamona, tenho meu senso de humor de baixa qualidade e bastante autodepreciativo, mas não sou alguém que você consideraria grossa.
Uma das coisas que mais escuto das pessoas que acabei de conhecer é “Nossa, achava que você era bem brava, mas você é tão simpática”. Já me falaram, mais de uma vez, que evitavam conversar comigo porque me achavam muito arrogante nas redes sociais.
Admito que fico meio mal quando me falam isso, porque sou muito paranoica com a ideia de estar atrapalhando a vida das pessoas. Navegar pelo mundo, pelo menos para mim, deve ser algo pacífico e imperceptível para os demais. Eu gosto de ser agradável e gosto de deixar as pessoas confortáveis.
Depois de mais de duas décadas na internet e criando uma Marie virtual, posso dizer que não gosto muito de quem me tornei na rede mundial de computadores.
Por isso, tô tentando dar um tempo de rede social. Eu vou voltar, não é um adeus e nem nada, mas acho que eu sou adulta o bastante para repensar e controlar minhas reações em público.
Sim, tem gente que gosta de passar o tempo livre me xingando e me ofendendo, mas isso é problema delas e não meu.
Uma coisa que gostei e não paro de pensar a respeito
Estou lendo “Nossa Parte de Noite” da Mariana Enriquez e gostando muito. É uma leitura fácil, gostosa e paradoxalmente assustadora e incômoda. Não sei explicar muito bem, mas é a mesma sensação que me dá quando leio os livros da Ottessa Moshfegh.
Dia 19 de agosto vou me dar um folga e ir para uma festa de gays animadas para assistir ao show do DJ K, um dos produtores de funk paulista mais legais e criador do tal “funk bruxaria”. É música de baile, música e festa. Bem anticomercial e experimental. Se você não ouviu o álbum “Pânico no Submundo”, recomendo:
Interações online são sempre muito difíceis. Na tela fica mais difícil lembrar que estamos interagindo com outras mentes tão complexas quanto a nossa, repletas de pensamentos, desejos, crenças e etc. É muito fácil ser cruel com alguém na internet, visto que não existe nenhum tipo de resposta comportamental do outro que não seja verbal (ver uma expressão de tristeza tomar conta do rosto da pessoa, por exemplo, é algo muito doloroso e que não existe num ambiente como o twitter). Enfim, é fácil desumanizar online. Simpatizei bastante com o texto, Marie. Muito bom como sempre
Por motivos diversos (bullying y traumas), criei uma persona extremamente ácida, reclamona e especialista em humilhar os outros na internet.
Me via na internet exatamente como se eu estivesse nas batalhas de freestyle que amo consumir: com uma platéia gritando MATA ELE CARALHO, pronto pra executar qualquer um que viesse responder a qualquer uma das provocações que eu colocava online, esperando alguém comprar a treta.
Isso me custou algumas amizades, e um bom bocado de sanidade.
Acabei deletando o twitter, saindo da maioria das redes e todo dia tenho que controlar esse monstrinho viciado em treta. Legal ler a experiencia de alguém que admiro intelectualmente pra me incentivar nessa luta anti fecho rs.