Dei play em “Bebê Rena” semana passada porque queria ver algo que me fizesse esquecer de certas coisas. Devorei a série em um dia. Além de muito bem escrita, é muito bem atuada. Talvez seja uma das melhores que a Netflix lançou nos últimos tempos.
A história, baseada em fatos reais, é centrada em Donny, um comediante perseguido por uma mulher durante mais ou menos dois anos. A obsessão da stalker, chamada Martha, começa após o comediante oferecer um chá por conta da casa no pub onde ele trabalha.
A partir de um ato de gentileza, Martha fica obcecada. De alguma forma, ela descobre o email de Donny e passa a enviar centenas de emails todos os dias. Os emails evoluem para perseguição na rua e Martha vai ficando cada vez mais agressiva até o ponto de agredir a namorada de Donny e indo atrás dos pais dele.
Martha é uma figura fascinante, assustadora e triste. Pior, ela foi baseada em uma pessoa de verdade. Inclusive, parece que alguns internautas descobriram a verdadeira Martha e agora ela está recebendo uma enxurrada de carinho vindo dos espectadores da série. Bacana, atitude normal vinda de pessoas da internet.
A mulher que persegue
Não há muitas pistas do motivo de Martha ser quem ela é. Sabemos que é uma mulher sozinha, obsessiva, com antecedentes de perseguições contra outras pessoas e com pouquíssimo interesse em si mesma. É visível como Martha abandona qualquer possibilidade de cuidar de si mesma só para cultivar sua obsessão.
A cena mais triste da série é a sequência onde Donny insiste em ajudar Martha depois de ver que ela está quase morrendo de hipotermia depois de horas sentada na frente da casa dele.
O apartamento de Martha está abandonado, bagunçado, sujo e só restaram alguns fragmentos da vida que ela poderia ter vivido se não fosse acometida por uma doença mental tão debilitante a ponto de interditar todos os setores da vida dela.
A obsessão de Martha se chama erotomania, uma espécie de paranoia onde a pessoa acredita que é amada por outra pessoa que sequer a conhece.
Em “Bebê Rena”, mesmo Donny sendo um cara sem grana, fama e longe de ser um galã, se torna o ponto fixo de Martha.
A aparência da personagem incomodou muita gente. Sim, Martha é uma mulher gorda. Ela se veste de forma estranha, usa maquiagem em excesso e parte da sua obsessão por Donny se manifesta em comentários absurdamente sexuais e inconvenientes. Ela fala sem qualquer filtro, em um fluxo de consciência, de tudo que gostaria de fazer na cama com ele.
A fixação das pessoas no corpo da personagem demonstra como muita gente que se diz tão preocupada com a representação de corpos gordos são as primeiras a reduzir uma pessoa gorda ao seu peso.
Em nenhum momento o peso de Martha é mencionado como um fator negativo. Ele sequer é mencionado, na verdade. Duvido que isso tenha acontecido na vida real e tenho certeza que isso foi uma escolha proposital de Richard Gadd (criador da série e o ator que interpreta Donny) para que o peso de Martha não limitasse a personagem.
A atriz, Jessica Gunning, soube exatamente como dar vida a uma mulher que tem tudo para ser vista como algo horrendo, mas que no final de contas também está em constante sofrimento.
Talvez Martha tenha causado tantos sentimentos conflitantes nos espectadores porque ela é a personificação de tudo o que uma mulher não deve ser. Ela é quase uma musa antidesejo que só quer ser amada e percebida como alguém capaz de dar e receber amor.
Segundo alguns especialistas (li uma pesquisa de 2006, ela provavelmente está desatualizada), a erotomania se manifesta em mulheres tímidas, retraídas e com pouca experiência social desde a infância.
Por mais que não exista qualquer tipo de proximidade, elas criam cenários imaginários onde são visitadas pelos homens por quais são obcecadas. Qualquer coisa que aconteça perto delas, por mais aleatório que seja, é encarado como um sinal de confirmação desse amor.
Independentes & Loucas
Olha, sinceramente? Não sei se há uma forma *correta* de retratar uma stalker em um filme ou qualquer tipo de obra de entretenimento. Não vou gastar dedo e saliva pensando no que o criador de “Bebê Rena” deveria ter feito para representar respeitosamente uma mulher sem controle das próprias faculdades mentais sem ser ofensivo.
Particularmente, achei a personagem de Martha interessante, porque minhas referências de mulheres perseguidoras e obsessivas iam pra um caminho totalmente inverso.
Lembro exatamente de assistir “Atração Fatal”, estrelado pela Glenn Close e aquele feio lá do Michael Douglas e ficar em estado permanente de pânico depois da cena do coelhinho morto na panela.
Acima de tudo, o filme parece um recado para todas as mulheres traindo a própria natureza. Sim, a personagem vivida por Glenn Close é bonita, bem sucedida e inteligente, mas nenhum homem quer ficar com ela de verdade. Resta apenas o papel de amante. Pior, amante de uma noite. O cara nem quer te manter no sigilo.
Mesmo a personagem sendo a epítome da mulher independente, o filme parece mostrar que o principal mesmo ela nunca terá por causa das conquistas dela: o amor de um homem sacramentado em um casamento, casa confortável e fotos de família na sala.
Ao perceber que o sucesso, a independência e a beleza não são nada perto da submissão de uma boa mulher doméstica, resta apenas para Glenn Close a obsessão. E a vingança.
Ela se dá mal, lógico. Vira lição de moral para as mulheres que acham que estão acima de uma vida tradicional. Pelo amor de Deus, os caras nem quiseram esconder as intenções do filme. Ela literalmente morre vestida de branco. Noiva para sempre.
Fé nas malucas (credo)
Personagens como a stalker de “Atração Fatal” ajudaram a sacrementar na cultura pop o estereótipo da mulher bonita, boa de cama e desequilibrada. Nem preciso dizer que é um conceito bastante amplo hoje em dia para classificar qualquer uma que seja um tiquinho fora da curva como maluca, a ruína de um homem. Ou apenas uma mulher mais fácil de ser manipulada para uma transa fácil.
Nessa ótica, fica mais fácil minimizar as ações de uma mulher que persegue ou invade a privacidade de um parceiro sob a justificativa de amá-lo demais. Não parece algo perigoso, mas sim um comportamento tipicamente feminino de rivalizar com outras mulheres e prender seu interesse amoroso.
É mais fácil fazer isso também porque além das mulheres muitas vezes serem vistas no pólo passivo das relações, os homens que perseguem sobem o grau num nível absurdo. A obsessão deles, caso não seja tratada, passa muito fácil para o campo da violência concreta.
Lembrei daquela piada do Donald Glover diferenciando as histórias de homens e mulheres sobre experiências com parceiros mais fora da casinha do que deveriam.
É mais comum ouvir um homem falando “nossa, lembra da minha ex fulana? Essa era maluca, hein?”. Muitas vezes, falam até num tom meio jocoso, engraçado. No caso de mulheres, essas histórias são bem mais sombrias. Ou às vezes nós nem chegamos a ouvir algo assim em primeira mão, porque muitas nem sobrevivem para contar.
Com esse clichê da mulher maluca pairando sobre nossas cabeças, servindo apenas para minimizar casos onde homens podem ser vítimas de perseguição, terror psicológico e violência, assistir uma série tão perturbadora como “Bebê Rena” foi um alívio.
É por isso que não há como exigir que a stalker Martha tenha uma representação respeitosa e politicamente correta perante os espectadores. Especialmente por ser uma pessoa que já abandonou as amarras sociais que nos obriga a sermos respeitosos e politicamente corretos em público.
A série tinha tudo para cair em armadilhas, mas conseguiu construir um retrato muito verossímil da bagunça que são as relações humanas e a falta completa de letramento e apoio para homens vítimas de abusos psicológicos e sexuais.
Como uma vítima deve lidar?
Muito do que foi falado sobre Bebê Rena se concentra nas reações que Donny tem ao assédio e perseguição incessante de Martha.
É irritante mesmo e a construção da série foi proposital para a gente questionar o protagonista. Afinal, ele aceitou tomar um café com Martha. Ele adicionou ela no Facebook. Ele foi atrás para ver onde ela mora. Ele a levou para casa para impedir que ela morresse de hipotermia. Quando a polícia agiu e Martha foi obrigada a cessar a perseguição, ele foi atrás dela porque ficou inquieto com o silêncio.
Para quem assiste até o terceiro episódio, Donny é um imbecil. Até chegarmos no quarto episódio, quando o passado do protagonista até momentos antes do primeiro encontro com Martha é revelado.
Donny foi abusado sexualmente por um homem mais velho que ocupava uma posição de poder desproporcional ao comediante. Ele era um roteirista famoso, com poder aquisitivo, conexões e influência. Já Donny era apenas um novato tentando dar certo no show business.
Sob o pretexto de alavancar a carreira de Donny na comédia, o homem passa a drogá-lo o tempo todo para se aproveitar da vulnerabilidade dele e cometer abusos.
Assim como muitos relatos de vítimas de violência sexual, Donny se mostra confuso e sem saber o que fazer nessas situações. Ele sabia que algo não estava certo, mas continuava voltando pra casa do abusador na esperança de que talvez isso fosse acabar depois que ele conseguisse alavancar sua carreira.
Mas nada disso aconteceu. Os abusos só aumentaram e Donny corta o contato com o abusador. Ele sai da situação com raiva, vergonha e confuso com a própria sexualidade e até sobre questões mais profundas sobre si mesmo.
O que eu mais escuto de outras pessoas comentando sobre esse tipo de situação é um certo ceticismo sobre se o abuso é real ou não com base na reação da vítima.
Já ouvi homens e mulheres questionando se um caso foi realmente estupro só porque a vítima ligou para o agressor no dia seguinte e não falou sobre o assunto.
O filme “Elle” de Paul Verhoeven foi duramente criticado na época porque parecia inverossímil que uma mulher agisse de maneira tão gélida e prática depois de ser estuprada.
Não há uma reação certa frente à uma violência sexual. E, por conta disso, não é a melhor régua para ser usada para classificar se algo foi consensual ou não. Ou se uma situação abusiva é real ou não, como é o caso da perseguição de Martha.
Uma vítima deixa de ser vítima pela quantidade de “nãos” que ela disse ao seu agressor? Uma vítima deixa de ser vítima se ela não chorou o bastante depois do abuso?
Não, ninguém tá pedindo pra ter pena e levar pra casa
Eu leio homens perturbados desabafando sobre muitas coisas dentro de espaços confinados há anos e posso dizer que, sim, o abuso sexual cometido contra homens é mais comum do que a gente imagina.
É normal perder isso de vista. Afinal, o pólo ativo da grande maioria dos abusos sexuais é ocupado por homens. É difícil enxergá-los como vulneráveis quando são eles os que detém o poder de machucar outra pessoa mais vulnerável do que eles. No caso, mulheres, crianças e adolescentes.
E enquanto a discussão sobre consentimento, sexo, abuso e violência sexual avançou para as mulheres, para os homens ela se manteve inerte. Não se fala sobre isso na maior parte das vezes. E quando falam, há sempre um tom jocoso nas entrelinhas.
Não que seja novidade, mas até hoje me choco com o fato de muitos amigos próximos e conhecidos já terem passado por situações terríveis quando eram mais jovens e não tinham nem repertório para entender que isso era abuso.
Lembro de colegas de escolas contando que foram levados para puteiros para perder a virgindade. Só um deles disse que ficou extremamente incomodado, porque ninguém perguntou pra ele se realmente queria perder a virgindade daquele jeito.
Penso em conhecidos e amigos relatando com desconforto interações estranhas com homens (e às vezes mulheres) mais velhos que só muitos anos depois eles entenderam que foram vítimas de abuso.
Lembro do meu avô materno contando que na infância ele tinha medo de um grupo de moleques que aterrorizava as ruas do bairro da Lapa, em São Paulo. “Era sair na porrada ou abaixar as calças", ele me disse uma vez, no meio de um café da manhã, quando conversávamos sobre outro assunto.
“Como assim, vô?", perguntei, confusa, e recebi em resposta um silêncio fruto de sua surdez seletiva. Era assim que ele evitava certos assuntos traumáticos. Ele morreu oito anos atrás, aos 80 anos, e nunca falamos sobre isso desde aquela única vez que ele me disse isso na mesa de café da manhã da casa dele.
Veja só, não estou escrevendo um texto para a gente sentir pena dos homens. Na verdade, não acho que deveríamos sentir pena de ninguém. Eu concordo que causa um estranhamento assistir um homem no papel de vítima.
É quase como os homens tivessem tentando roubar o espaço das mulheres até mesmo em situações indesejável onde nós, infelizmente, estamos acostumadas a ocupar o lugar de protagonistas.
Um show de dicas
Um filme
Threads (1984)
Não está disponível em lugar nenhum, tem que piratear.
Esse é facilmente o filme mais antiguerra que eu vi depois de “Come And See”. O foco não está nos militares e chefes de estado pensando em estratégias mirabolantes para derrotar o inimigo, mas em pessoas comuns preocupadas com trabalho, amigos e relacionamentos até o momento em que a consequência de uma guerra cai literalmente sob a cabeça de todo mundo. No caso, uma bomba atômica na Inglaterra.
“Threads” parece inofensivo à primeira vista, mas te deixa mal do começo ao fim. A primeira hora é só a espera de algo horrível e a segunda hora é a coisa horrível acontecendo sem trégua e destruindo tudo ao seu redor.
Não assista durante episódio depressivo.
Uma música
Come Wander With Me - Emilie Satt
Sim, é a música da Martha.
Um podcast
Um perfil franco, completo e muito bem feito sobre o Clodovil Hernandez. São seis episódios contando toda a ascensão do estilista do mundo da moda brasileira, a carreira turbulenta e bem sucedida na TV e o último ato na Câmara dos Deputados. Parafraseando Mc Naninha: Patricia Oyama e Gabriel Monteiro fizeram um trabalho lindo.
Um livro
Com toda certeza é o livro mais “leve” e engraçado de Ottessa. Ela é tão boa na construção de personagens interessantes que eu seria capaz de ler milhares de páginas escritas por ela apenas narrando pessoas fazendo coisas mundanas.
Um Merchan
Estou especialmente empoderada porque saiu minha colaboração pro Rádio Novelo Apresenta, o podcast mais chique do Brasil!!
Melhor ainda: a história envolve cemitérios, o incêndio do Edifício Joelma e a construção da figura do milagreiro de cemitério.
Dá pra ouvir em todas as plataformas de áudios, no Youtube e no site da Rádio Novelo.
Não vi Babe Rena ainda.
Mas foi vendo I May Destroy You, uma série britânica bem interessante, que me dei conta de que o abuso sexual contra homens é mais frequente do que eu imaginava e que não existe uma maneira estruturada, em parte alguma, para lidar com essa questão. Um amigo meu, que é gay e também assistiu a série, me disse que não é incomum que a primeira experiência sexual de homens gays sejam com homens mais velhos e a sujeição a abusos não é incomum. Assim, palavras dele, que disse conhecer muitas história parecidas.
Também acabei me lembrando de um pesquisador que integrava a Comissão da Verdade, comentando que o abuso sexual no meio militar não era algo raro. Mas nas vezes em que se chegavam a um relato, este era sempre oblíquo, meio dito ou autosilenciado, como o exemplo que você deu do seu avô.
Certa vez um amigo próximo me contou, em tom meio jocoso, um relato perturbador sobre um episódio com um parente mais velho. Meu amigo não se dá conta (ou prefere não concretizar essa noção), de que aquilo não foi feito com consentimento.
Enfim... os homens são os maiores vetores de violência. E me parece bem improvável que também poupem uns aos outros.
Muito bom texto, como sempre.
A única maluca em quem tenho fé é em vc!!!11