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Em tempos de urubu do pix, influenciadores ganhando comissão para te convencer a entrar em site de apostas ou frequentar rodízio de sushi de salmão com catupiry e Luisy Sonzy divulgando término de namoro em rede nacional, parece que todo mundo quer ter enganar, não é mesmo?
Por isso, considere assinar minha newsletter. Aqui eu não engano ninguém, não prometo nada (olha só, é o nome da newsletter!!), não falo mentiras e também não fico calada frente aos horrores da sociedade.
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Algo desperta dentro de mim quando ouço ou leio alguém se dizendo contra a pirataria de filmes, música e livros. Tanto por questões morais, quanto por questões pessoais. A pirataria moldou minha identidade. Uma das primeiras coisas que aprendi a fazer quando pude navegar sem supervisão na internet foi baixar toda a discografia do Blink-182 no KaZaA. Um dos arquivos baixados era pornografia e não o álbum Chesrire Cat? Sim, mas não vem ao caso.
Na faculdade, praticamente tudo que eu li foi pirateado. Não tinha dinheiro pra comprar os livros que pediam e nem sempre eles ficavam disponíveis na biblioteca, então pedia emprestado pra algum colega e sentava a mão na máquina ultramoderna de xerox disponível no meu primeiro estágio. Devo ter tranquilamente xerocado e/ou imprimido milhares de páginas. Provavelmente devo ter o Código de Processo Penal Comentado do Guilherme Nucci completamente xerocado em alguma caixa na minha casa.

A pirataria também, literalmente, me alimentou durante uns bons anos. Por causa disso, seria imoral me posicionar contra a existência dela.
Explico.
Uma vez disse que venho de uma família de estelionatários. Não é verdade, mas também não é mentira. Sim, minha avó paterna foi agiota. E, sim, meu pai aplicou muitos golpes em geral em vida. Um deles, o golpe mais honesto de todos pois a vítima era a Grande Hollywood, foi vender DVDs piratas pela cidade de São Paulo.
Explico mais uma vez.
Meu pai veio de uma família endinheirada. O pai dele, meu avô, nasceu na Bélgica e pertencia a uma família de industriários com grana e certa influência. Meu avô fez mais grana ainda no Brasil, mas desapareceu nos anos 1980 pilotando um avião. Ele foi declarado morto depois de um tempo de investigação, deixando uma herança boa para todos os filhos.
Meu pai usou a herança para abrir uma empresa de tecnologia e ganhou ainda mais dinheiro. Ele era um cara inteligente, bom de papo, cativante e bem nerd. Nos anos 1990, ele ia para o Paraguai comprar equipamento e contrabandeava tudo pro Brasil.
Por causa disso e mais outros detalhes importantes (minha mãe foi uma advogada criminal PICA), minha infância foi muito confortável. Para falar o português claro, eu fui uma criança boy. Viajei muitas vezes para a Disney, tive todas as Barbies que quis, vestia pólo da Lacoste, tinha um VHS e uma TV só pra mim (fui filha única durante muito tempo) e morei em uma casa com piscina e sauna. Eu tive uma babá. Eu aprendi a falar alemão desde cedo.
Fica comigo, não desiste.
Lembra que descrevi meu pai como um homem inteligente, bom de papo, cativante e bem nerd? Ele era tudo isso mesmo, mas meu pai também era o maior mentiroso que já conheci. Meu pai mentia sem dó, sem compromisso com a narrativa, sem manter o registro das próprias mentiras.
Essa coisa da mentira foi criando uma trama muito complicada, até meu pai perder todo o dinheiro, o dinheiro herdado e o dinheiro trabalhado.
Uma parte, perdeu gastando e outra parte perdeu pagando advogados para impedirem que o trambique dele o levasse para a cadeia.
Até hoje, não sei 100% o que aconteceu, mas vivi muito bem as consequências do trambique frustrado do meu pai.
A casa começou a se deteriorar rapidamente. O primeiro indício foi a piscina. Sem piscineiro indo toda semana, a água rapidamente ficou verde e musguenta. Tinha muito mosquito. Depois, manchas negras surgiam no teto e nas paredes. A casa estava sendo tomada pela umidade e mofo negro. Quem diria que uma casa enorme precisaria de dinheiro para manutenção?
Depois, a luz começou a ser cortada com uma certa frequência. O almoço nem sempre tinha carne. Enfim, acabou o milho e acabou a pipoca. Sabe o filme Grey Gardens? Pois é, compreendo um pouco a situação precária das duas, que eram riquíssimas e terminaram em una casa tomada por bichos, jornais e mato. A situação da casa sempre é o primeiro indício de perda de dinheiro.
Meu pai era um cara acostumado a viver uma vida confortável e performar seu papel de provedor estilo Don Draper. No caso, fazer o que quiser na rua e voltar pra família cono se nada tivesse acontecido.
Ele sabia montar computadores do zero, mas não sabia fazer um arroz. Ele fazia o melhor churrasco do mundo, mas não sabia diferenciar um Veja de um Vanish. Nunca o vi pegando em uma vassoura ou lavando um copo.
Com a ruína financeira, meu pai era um homem tradicional obrigado a enfrentar uma realidade dura, onde talvez ele não teria mais como pagar uma empregada pra cuidar da casa todos os dias. A situação parecia estar matando ele por dentro, mas conseguia manter a aura mentirosa de que tudo estava bem e a culpa era de todo o resto do mundo.
Não sei ao certo dizer que ano que foi isso, mas um dia acordei e vi pilhas de notas de dinheiro em cima da mesa de jantar. Eram notas de 1, 2, 5 e 10 reais, notas pequenas, e todas bem gastas.
Meu pai passava algumas horas com a minha madrasta (meus pais já haviam se separado há um tempinho) contando todo esse dinheiro, separando o que era para pagar conta. Depois, eles prendiam o dinheiro com clips e elásticos e se dividiam em dois carros de manhã e só voltavam no final da tarde.
Ao mesmo tempo, o quartinho dos fundos da casa ganhou um armário gigante de madeira. Por um motivo completamente aleatório, esse armário tinha um fundo falso que revelava um quartinho ainda menor onde tinha uma mesa com um computador com conexão de internet e uma torre de CDs virgens. Normal, nada de estranho nisso.
Meu pai também vinha me perguntar se queria assistir alguma coisa em especifíco. Lembro de falar de alguns filmes que não tinham lançado ainda no Brasil e ele chegava com um DVD sem nome nas mãos, dias depois, falando: “Tá aqui!”.
Pilhas de DVDs embrulhados em saquinhos plásticos com capas mal impressas brotaram em todos os cantos da casa. Tinha na sala, na cozinha, no banheiro, nos armários, nas prateleiras de livro. Capinhas de plástico com um DVD dentro onde se lia, escrito a mão, Pânico III ou Carnaval Brasileirinhas 2002 (meu pai era desorganizado).
A maior parte eram filmes recém-lançados ou inéditos nos cinemas brasileiros nos anos 2000. Alguns sequer foram lançados aqui. . Lembro exatamente do dia que meu pai apareceu com uma cópia de Jackass - O Filme nas mãos e eu surtei, porque Jackass era meu programa favorito — sim, os anos 2000 foram uma grande miséria de alma.
Me sentia muito atualizada no colégio. Eu já tinha visto todos os filmes antes mesmo de estrearem no cinema. Tropa de Elite? Pffff, já tinha assistido a versão sem finalização muito tempo antes.
Óbvio que havia um custo para ficar a par de todos os grandes lançamentos da sétima arte dos anos 2000. A qualidade da imagem e som eram terríveis. Parecia que estava vendo um filme arrastado numa calçada e depois banhado em lixo. Qualidade 140px, legendas caóticas.
Às vezes, você ouvia um barulho de tosse ou espirro em uma cena onde nenhum personagem tossiu ou espirrou. No meio do filme, já aconteceu algumas vezes de aprecer um borrão preto do nada, tomando metade da tela. Era uma pessoa levantando no meio do cinema para mijar, causando uma pequena intervenção na captura de tela de um americano sem caratér fazendo um CAMrip em algum buraco do meio-oeste americano.
Isso sem contar com as legendas piratas (isso foi antes de existir instuições seríssimas como o InSanos), um festival de inglês improvisado. Alguns legendadores, estes mais ousados, tomavam certas liberdades artísticas e escreviam piadinhas entre as falas.
No filme As Panteras: Detonando, por exemplo, o qual vi no conforto do meu lar duas semanas antes da estreia, o cara da legenda simplesmente passou o filme todo escrevendo “gostosa” na legenda depois de toda fala da Demi Moore.
Nessa bagunça do mercado de DVDs piratas, meu pai gravava centenas de filmes por semana e saía para distribuir em pontos de venda pela cidade. Só lembro de ter acompanhado uma entrega feira pelo meu pai: a do Pipoca, apelido enigmátigo para um vendedor de pipoca que ficava na porta da UNIP de Santo Amaro e também vendia DVD pirata.
Querendo ou não, a pirataria pagou as contas de casa durante um tempo. Pagou minha escola, meus livros, meus rolês de jovem pelo shopping Morumbi. Meu pai era um exímio distribuidor de pirataria, o dono da Zona Sul de São Paulo (na minha cabeça).
Lembra daquela propaganda onde uma mulher mostra um filme pirata pra filha e aparece antes do filme um monte de traficante agradecendo pela força? Ou aquele que o cara que vende DVD pirata dá troco em bala?
Eu ria muito vendo aquilo, porque era pra ser meu pai ali. Um cara acima do peso, calvo, com uma sudorese extrema e fã convicto de Star Trek e Formúla 1, tentando pagar a mensalidade do colégio dos filhos.
Esse personagem não causaria o impacto desejado na propaganda, imagino.
“DVD pirata, pai? Você não vê que tá ajudando o CRIME? Amanhã vão vender droga lá na escola por causa desse DVD!" kkkk criança pentelha do caralho
Meu pai nunca disse com todas as letras o que ele fazia. Ele era cara de pau nesse nível. Ele se negou de contar pra mim o que tava rolando até na vez que a Polícia Federal fez uma batida em casa para confiscar todo o material do meu pai, inclusive os DVDS. Ele foi preso, mas voltou pra casa bo mesmo dia.
A PF nunca mais apareceu em casa, mas também meu pai nunca mais voltou a vender DVD pirata.
Meu pai também não recuperou a grana que perdeu. Pirataria ou não, ele se envolveu em problemas complexos demais para serem resolvidos apenas dando uma maleta de madeira pro Pipoca vender na frente da UNIP Santo Amaro.
Ao longo dos anos, a casa onde nasci continuou se deteriorando, a piscina foi esvaziada e hoje ela pertence a outro alguém que comprou o imóvel depois dele ser leiloado pela justiça.
Meu pai morreu em 2019, aos 58 anos. Eu não falava com ele há mais de um ano quando a minha madrasta avisou que ele tinha sido hospitalizado e tava em estado grave. Cheguei no hospital quando ele já estava sedado e nunca tive chance de perguntar sobre a época em que ele peitou a indústria de cinema de Hollywood.
Meu pai era muito bom em misturar as mentiras dele com s verdades pela metade, então não sei se faria diferença se ele tivesse acordado no hospital. Isso é uma das histórias que se foram com ele, transformando esse período terrível em algo meio mítico, tragicômico.
Aprendi muito cedo que às vezes a gente faz coisas que não queremos para ter uma vida relativamente melhor. Meu pai com certeza não queria virar um barão da pirataria, mas ele também não queria viver em um casarão sem luz. Ele tinha seus problemas, foi um homem muito difícil de conviver, mas fez o que podia com o que tinha disponível.
Sei lá, talvez era para ser assim mesmo.
Demorei um tempo para entender o que meu pai fazia naquela época. Ele fez muita coisa errada, mas a pirataria me pareceu a mais inócua de todas. Quem ele estava ferindo além da lei de copyright?
Ele odiaria esse texto, aliás. Meu pai sempre preferiu coisas mais sérias e adultas como os romances do Tom Clancy.
Uma coisa que gostei e não paro de pensar a respeito
Queridos, aqui é um espaço democrático e de livre mercado, portanto não tenho pretensão alguma de fingir que não existem pessoas mais engraçadas e inteligentes do que eu mantendo newsletters para posteriormente destruí-los em segredo e eliminar minha concorrência de forma implacável.
Para provar isso, vou listar algumas publicações que me fazem soltar um arzinho pelo nariz (eu não sorrio nunca):
Cartas do Bolívar: O Bolívar Escobar é um homem erudito e dotado de um humor primoroso e classudo. Em momento algum este homem indicaria o vídeo do Diego Alemão, ex-BBB, saindo de uma delegacia no Rio de Janeiro chamando jornalistas de “urubuzada” depois de ser preso por porte de arma ilegal.
Conforme Solicitado: Newsletter colaborativa do Arnaldo Branco, João Luís Jr. e Gabriel Trigueiro, homens chiques & inteligentes, escrevendo sobre as tais idiossincrasias do brasileiro pós-redemocratização. O Arnaldo, um dos meus ídolos, indicou minha newsletter semana passada. Que bom, Arnaldo, feliz que o pix caiu! O Arnaldo também me acusou de ser uma pessoa sem joie de vivre, o que é uma enorme mentira. Eu sou a pessoa mais solar do Brasil.
Eu destruirei vocês: A Isabela foi a primeira pessoa que falou comigo no substack e a primeira newsletter que assinei. Ela escreve muito bem sobre música, filmes e cultura sem parecer um senhor misógino que fugiu do grupo da Bizz no Facebook. Ela também escreve sobre futebol, a deep web do futebol e faz isso de um jeito tão interessante que até eu leio.
Sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa: A Taize é parça, escreve muito bem, indica livros ótimos, reclama de maneira chique sem parecer uma pentelha e sempre consegue resumir a insanidade do dia de forma talentosa.
O Tropa de Elite vazado antes do lançamento deve ter rendido uma bela grana para a família Declercq em 2007
Tava rindo muito de todo o texto mas aí o final me pegou e marejei os olhos (meu pai também não tá mais aqui e não tínhamos uma relação fácil).